Tempo antigo... - DJ Blog

Tempo antigo...

Publicado em sábado, 4 de fevereiro de 2012



Até o nome era perfeito. Anastácia. A Helena só não disse para as amigas que elatinha caído do céu porque imaginou a Anastácia, gorda daquele jeito, caindo em cima da suacasa e demolindo tudo. Mas que tinha sido um milagre encontrar uma cozinheira comoaquela, como não se via mais, saída de um livro antigo, tinha. Os cabelos brancos, o sorriso permanente na grande cara preta, os peitos enormes, a simpatia. E dava para ver só pela caraque a sua comida era boa. Boa como também não se encontrava mais.― Ela me pediu um tacho para fazer goiabada. Vocês acreditam? Vamos ter goiabada feita em casa!As amigas tinham toda a razão para invejar a Helena. De onde saíra aquelamaravilha?― Ela se apresentou. Com credenciais e tudo. Pediu um pouco alto, mas dava pararesistir? Com aquela cara? Contratei na hora.

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Além da goiabada, Anastácia fazia conservas, compotas, geléias e doces.Muitos doces. Doces todos os dias. Com ovos e muito açúcar. Helena pediu para elamaneirar nos doces. O doutor não podia comer muito açúcar, ela mesma estava tentando perder peso, precisavam pensar nos dentes das crianças... Anastácia não entendeu.― "Maneirar"?― É. Quem sabe doce só nos fins de semana?O sorriso da Anastácia era de quem continuava não entendendo. Os seus doces nãoestava agradando? Helena recuou.― Tudo bem, Anastácia. Faça o que você quiser.Dava para resistir àquela cara?

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Outra coisa: Anastácia anunciou que não sabia trabalhar com aqueles óleosesquisitos que encontrara na cozinha. Só sabia cozinhar com banha de porco.Comida gostosa tinha que ser com banha de porco.― Banha de porco? ― assustou-se Helena. ― Nem sei se ainda se encontra issono...― Pode deixar que eu encontro, dona Helena.A primeira refeição que Anastácia fez com a banha de porco que trouxe, em latas,do mercado foi um grande sucesso. O doutor chegou a dizer que não comia um feijão comoaquele desde a sua infância. As crianças adoraram as batatas douradas. Qual era o segredoda Anastácia, por que a sua comida era tão mais gostosa do que a que eles estavaacostumados? Helena não contou da banha de porco. Precisaria de tempo para convencer Anastácia a voltar aos óleos esquisitos mas saudáveis. E, afinal, que mal poderia fazer umasemana ou duas de banha de porco? E que a comida ficava mais saborosa, ficava.

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Uma noite, depois do jantar, o doutor estranhou o silêncio. Onde estavam osmeninos? Eles costumavam correr da mesa para os seus barulhentos videogames e ficar jogando até a hora de dormir, todas as noites. Mas a TV deles estava em silêncio. E osmeninos estavam na cozinha, ouvindo a Anastácia contar uma história. Helena e o maridoforam espiar e deram com aquele quadro que também parecia saído de um livro antigo.Anastácia mexendo alguma coisa no tacho, fazendo um dos seus doces irresistíveis, e osmeninos sentados no chão, ouvindo, embevecidos, a história que ela contava. O que Helenae o marido não tinham conseguido nem com súplicas nem com ameaças, tirar os meninos dafrente da TV, Anastácia conseguira com suas histórias. E daquela noite em diante, depois do jantar, os meninos mal podiam esperar Anastácia tirar a mesa e lavar os pratos antes desentarem no chão da cozinha para ouvir outra história. O doutor passou a ler seu jornal em paz e Helena passou a ver sua novela sem precisar aumentar o volume para abafar a zoeirados videogames. Pensando sempre: "Que maravilha. Essa Anastácia, que maravilha."Pensando: "É como se tivéssemos voltado ao tempo antigo." E pensando: "Isto é bomdemais para durar."

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Uma noite, o filho menor fez uma coisa que não fazia há muito tempo. Pediu paradormir na cama com o pai e a mãe. Disse que estava com medo da mula-sem-cabeça. Doquê?! O mais velho, que chegou logo em seguida e também pediu refúgio na cama, contouque a história da mula-sem-cabeça era uma das que a Anastácia contava. Ela tambémcontava histórias do Tião Tesoura, que entrava no quarto de garotos que faziam xixi na camae cortava os seus pintos. E do Preto Mamão, que pegava crianças desobedientes e levava para criar junto com os seus porcos, e quando elas ficavam bem gordinhas, assava vivas. Odoutor argumentou que os videogames dos meninos também estavam cheios de monstros, eque nenhum tirava o sono deles. Os meninos responderam que os monstros dos videogameseram eletrônicos, de mentira, e, mesmo, podiam ser desintegrados com zapeadas certeiras.Já a mãe da Anastácia vira, pessoalmente, a mula-sem-cabeça. Anastácia conhecia gente queconhecia vítimas do Tião Tesoura. Uma tia dela só se livrara de ser assada viva porqueconseguira fugir do chiqueiro do Preto Mamão. E...

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Helena pediu para Anastácia maneirar nas histórias que contava para os meninos.― "Maneirar"?― Inventa umas mais, assim...― Eu não invento nada, dona Helena. Tudo que eu conto aconteceu mesmo. Naquela noite, custaram a convencer os meninos a não sentarem no chão da cozinha para ouvir a história da Anastácia e irem jogar videogame. Eles queriam ser aterrorizados.Helena decidiu que era melhor mandar a Anastácia embora. Além dos dentes, precisava pensar na formação psicológica das crianças. O doutor também começara a se queixar de problemas gástricos, e não ia demorar muito para a sua taxa de colesterol ir lá em cima."É melhor mandar ela embora', pensou Helena.E pensou: "Era bom demais para durar..."

Luis Fernando Veríssimo.

3 comentários:

Paloma Viricio disse...

Muito bom...adoro Veríssimo!
Bjus!
http://palomaviricio.blogspot.com

Unknown disse...

Ah! que fofa a Anastácia, queria uma assim aqui em casa, sinto falta da minha saudosa mãezinha que tbm me contava essas histórias e fazia doces maravilhosos.
BjoBjo;)
Celina Alves
Luxos e Luxos

Deyse Joyce disse...

Adoro a ironia dele!!!

Bjins



@dejotablog