O que o papagaio cantava. - DJ Blog

O que o papagaio cantava.

Publicado em quarta-feira, 24 de outubro de 2012

  (Imagem: Reprodução)

Para a quarta feira um maravilhoso texto do nosso maravilhosos LFV, curtam...


O homem da cicatriz e o anão chinês não pediram nada. Foram direto ao assunto.
O homem da cicatriz pegou o barman pela frente da camisa e o puxou até os dois ficarem nariz a nariz. O barman gritou de dor porque o homem da cicatriz tinha esquecido de tirar o charuto aceso da boca.
― Você é McDuff? ― perguntou o homem da cicatriz.
― Quem quer saber? ― perguntou o barman.
― Eu, moderadamente, mas ele muito mais ― disse o homem da cicatriz,apontando com o polegar para o anão chinês, que tinha tirado uma pistola quase maior do que ele de dentro do casaco e agora a apontava para a orelha do barman.
― Fale ― disse o anão chinês. ― Desta distância, mesmo se eu errar o tiro, você ficará surdo com o estampido. Você é McDuff ou não é?
― Sou.
― Você morou no mesmo prédio de Graminsky, na Antuérpia?
― Graminsky?― Um homem enorme. Seis, sete vezes o meu tamanho. Cabelo vermelho, barba verde. Uma perna mecânica e um olho de vidro com uma paisagenzinha de inverno dentro.Pintava as unhas.
― Como se escreve "Graminsky"?
O anão chinês introduziu a ponta do cano da pistola no ouvido do barman.
― Agora você não precisa se preocupar ― disse o anão chinês. ― Estará morto antes de ouvir o estampido.
― Está bem! ― disse McDuff. ― Morei, sim, no mesmo prédio de Graminsky. Ele e seu maldito papagaio.
O homem da cicatriz e o anão chinês se entreolharam.― Você se lembra do papagaio? ― perguntou o homem da cicatriz.
― Como poderia esquecer? Eu passava o dia inteiro gritando para ele calar a boca. Porque ele passava o dia inteiro dizendo a mesma coisa.
― O quê?
― O que o quê?
― O papagaio! Passava o dia inteiro dizendo o quê?
― Sei lá. Era uma canção. Um poema. "Seis odaliscas em um colchão, sete ministros só de calção..." Não, era "Quatro odaliscas só de calção, seis ministros em..."Espera um pouquinho. Eram sete odaliscas, seis ministros... Não consigo me lembrar.
― Tente ― pediu o anão japonês, tirando outro revólver de cano longo de dentro do casaco e apontando-o para a testa de McDuff ― ou em dois segundos os seus miolos é que estarão fritando naquela grelha.
O homem da cicatriz fez uma careta. Ainda não tinha almoçado.
― Não consigo! ― disse McDuff. ― Faz muito tempo. O prédio já foi demolido. Nem sei se a Antuérpia ainda continua lá.
― Tente! ― ordenou o anão chinês.
― Deixa ver... Seis odaliscas num colchão, quatro ministros de calção, dois cabritos do Dão, cinco bispos de São João... Não. Cinco odaliscas num colchão, dois bispos do Dão,sete cabritos de São João, dois ministros... Não, não, não. Não consigo me lembrar!
O homem da cicatriz bateu com a mão espalmada no balcão e gritou:― Maldição!
― Você era a nossa última esperança ― disse o anão chinês para McDuff, sentido.
― Me dá um uísque ― disse o homem da cicatriz ― e um hambúrguer.
― Por que vocês queriam saber o que o papagaio dizia? ― perguntou o barman servindo o uísque, aliviado porque as pistolas do anão chinês tinham voltado para dentro do seu casaco. Foi o anão chinês quem respondeu.
― Porque as últimas palavras do maldito traidor Graminsky antes de morrer foram"o papagaio".
― Graminsky morreu?― Está com quatro balas no corpo e embaixo da terra há seis meses.
É uma dedução lógica ― disse o homem da cicatriz.― A única pista que tínhamos do número da senha para retirar do banco o dinheiro que Graminsky nos roubou eram as últimas palavras dele
― prosseguiu o anão. ― "O papagaio."
― Fomos até o apartamento dele ― continuou o homem da cicatriz. ― Lá estava o papagaio, na sua gaiola. O papagaio não parava de falar. Ou de cantar, ou o que fosse. Não prestamos atenção no que ele dizia. Procurávamos números.Revistamos o papagaio. Revistamos a gaiola. Procuramos nos jornais no fundo da gaiola. Demolimos a gaiola. E a todas essas o papagaio cantando. Foi aí que esse imbecil teve a idéia.
O imbecil era o anão chinês. Que defendeu-se:― Você também não agüentava mais a cantoria do papagaio!
― Esse imbecil decidiu que os números estavam dentro do papagaio. E matou o bicho.Silêncio.
Depois, já com o hambúrguer na sua frente, o homem da cicatriz continuou:
― Depois de nos darmos conta que a senha não estava na barriga do papagaio,estava na sua canção, passamos estes últimos seis meses procurando os vizinhos do Graminsky naquele prédio da Antuérpia. Todos os que tinham ouvido o papagaio cantar e podiam se lembrar das palavras da canção. E, principalmente, dos números. Encontramos todos. Dois tinham morrido, mas localizamos os outros nove. Dez, com você. E nenhum conseguiu se lembrar com exatidão o que o papagaio cantava. Nem com a ameaça de perderem os miolos, ou coisa pior.
― Espere! A gorda do terceiro andar. A cartomante. Ela estava sempre com o gravador ligado. Gravava tudo no prédio. Deve ter gravado o que o papagaio cantava! O homem da cicatriz e o anão chinês sacudiram a cabeça com tristeza.
― Ela nos mostrou as gravações. Não se ouve nada. Aliás, só se ouve você gritando para o papagaio calar a boca.O anão chinês estava tirando as duas pistolas de dentro do casaco outra vez.
― Tente mais um pouco, McDuff.
― Deixa ver. Sete odaliscas num colchão, dois cabritos de calção... Não.Quatro bispos do Dão, um ministro de São João... Não. Quatro odaliscas... Não consigo!
― Continue tentando, McDuff. Não temos nada para fazer nos próximos seis meses.

Luís Fernando Veríssimo.

3 comentários:

Leidiana Pereira disse...

Amei o texto amiga, Fernando Veríssimo é mto bom, lembrei na hora da minha professora de Português, ela é apaixonada por ele! rsrs
Beijos! ♥

Unknown disse...

kkkkk, muito boa, não conhecia.
BjoBjo querida;)
Celina Alves
Luxos e Luxos
P.s.: Até eu fiquei curiosa com esses números rsrs

Fashion Jacket disse...

Ótimo!! Veríssimo é muito bom.

Beijos

Jéssica
Fashion Jacket



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