Ao passar pela costa do Quersoneso, a nau dos argonautas fora atirada pelas ondas.
Ali teve ela de permanecer por alguns dias, a fim de reparar os danos sofridos. Esta ilha tinha ao centro uma imensa montanha, habitada pelos Dólios, temíveis gigantes de seis braços.
Assim que os forasteiros desembarcaram na ilha, os gigantes puseram-se alertas, saindo um a um da boca da caverna. O líder do grupo ia à frente, pisando firme. Com uma das suas seis mãos penteava os imundos cabelos; com a segunda cobria um bocejo; com a terceira coçava as costas; com a quarta limpava o nariz; com a quinta fazia sombra para os olhos; e com a sexta, finalmente, espantava as moscas.
Os gigantes não estavam para conversa; a primeira coisa que fizeram ao perceber a presença dos intrusos foi erguer grandes rochas e lançá-las na direção do navio.
Jasão, reunindo seus homens, deu-lhes combate, lançando em retribuição as setas de seu arco. Hércules, desejoso de provar a força de seus músculos, atracou-se com vários ao mesmo tempo, exterminando-os em poucos minutos, enquanto os demais argonautas davam conta dos demais gigantes com seus arcos.
Infelizmente, esta foi a única ocasião que os argonautas tiveram para presenciar o valor do maior dos heróis, pois às costas da Mísia, Hércules teve de abandoná-los: seu amigo Hilas fora raptado pelas ninfas quando recolhia água num rio, e Hércules preferiu ficar ali para tentar resgatá-lo.
Partindo novamente, os argonautas chegaram à terra dos Bebrícios. Lá, no entanto, não foram mais bem recepcionados do que na ilha dos temíveis Dólios. O rei do lugar chamava-se Amico, mas era, na verdade, homem de poucos amigos. Era filho de Poseidon e achava que isto era desculpa bastante para exercer o seu orgulho da forma mais sanguinária.
Desde há muito tempo havia instituído em seu reino o costume bárbaro de desafiar para um duelo a socos qualquer forasteiro que pisasse em seus domínios. Disto resultava que ninguém ficava vivo em sua ilha mais do que alguns minutos. Quando avistou o navio Argo ancorando em suas águas, correu logo para a praia, pronto a desafiar os visitantes.
— Que ninguém ouse colocar os pés sujos em meu reino, sem antes declarar que aceita bater-se comigo num duelo de vida ou morte! — gritou o rei em direção à nau dos gregos.
Os tripulantes entreolharam-se, surpresos. Surpresos, porém não assustados. Todos imediatamente disputaram entre si o direito de enfrentar o poderoso oponente.
— Aqui está o seu inimigo! — disse Pólux, adiantando-se em direção ao rei, cercado por seus amigos.
— Vêm todos juntos, gregos covardes? — disse Amico, com um riso de escárnio.
— Guarde os gracejos para os seus lacaios, rei da arrogância — disse Pólux, encarando seu inimigo com rudeza no olhar.
— Atrevido! — rugiu Amico. — Pagará com a vida por sua petulância! -Depois, virando-se para os lacaios, que ainda riam de seu mau gracejo, ordenou:
— Vamos, tragam logo as manoplas!
Manoplas eram luvas cobertas com pontas de ferro. O rei recebeu a sua e lançou a outra às faces do adversário, junto com uma cusparada de sua bílis negra.
— Vamos, imbecil, vista isto e prepare-se para morrer! — disse, sacudindo o punho enluvado.
Pólux deu um sorriso de mofa, enquanto pegava no chão a luva cheia de pregos.
Desfazendo-se das roupas, para ter os movimentos facilitados, os dois trajavam apenas aquela terrível luva. Uma das mãos permanecia descoberta, para poder agarrar os braços do outro, num confronto direto. Em instantes estavam os dois frente a frente; seus corpos movimentavam-se com cautela, medindo os passos, enquanto estudavam os gestos do adversário. Amico, julgando ser seu dever começar a bater, avançou para Pólux, enviando um poderoso soco que passou raspando pelos cabelos deste. Dois pregos, contudo, arranharam ligeiramente a sua testa, e duas finas listras horizontais de sangue foram brotando ao mesmo tempo em sua fronte, como se uma mão firme e invisível as traçasse com absoluta precisão.
— Seu sangue já começa a correr, maldito! — gritou o rei, possuído. — Vamos, covarde, ainda há tempo para desistir!
A resposta foi um poderoso golpe da mão enluvada de Pólux que, apesar de errar o alvo, leva consigo um pedaço do ombro do adversário. O rei, ferido, engoliu um terrível grito de dor. Seus dentes rangeram de tal forma que todos ouviram perfeitamente o ruído deles esfregando-se dentro da boca. Uma espuma branca começou a brotar dos cantos dos lábios.
— Pagará caro por isto, demônio! — grita Amico, alucinado.
— Fale menos e brigue melhor!
Com a mão desenluvada, Amico acertou um golpe no rosto de Pólux, que recuou dois passos para trás, tentando recuperar o equilíbrio. Amico, dando um grito de triunfo, avançou com sua mão enluvada, pronto a acabar com o inimigo momentaneamente desorientado. Os companheiros de Pólux suspenderam a respiração.
Porém, desviando-se com impressionante agilidade, Pólux remeteu com a mão livre um soco, de cima para baixo, ao queixo de Amico, que o fez cuspir oito dentes ao mesmo tempo, em um espirro vermelho de sangue. Com a língua empapada, o rei fez a vistoria na boca, cuspindo os cacos que se enterraram dolorosamente nas gengivas. Seu queixo cobria-se com um cavanhaque de sangue, do qual pendia um fio vermelho e balouçante. O juiz da contenda, prevendo o pior, suspendeu momentaneamente a luta.
— Que tal está? — perguntou Jasão a Pólux.
— Nunca estive melhor — respondeu o confiante herói, enquanto secava o suor do corpo.
Amico, apesar de ter o peito manchado do sangue que escorria da sua boca, não se deixou abalar:
— Dentro de instantes o miserável estará morto — diz Amico a um bajulador, que secava com dedicação o corpo do rei. Enquanto o lacaio fazia a sua higiene, Amico estudava o melhor meio de liquidar seu adversário. De repente, porém, deu um grito de dor:
— Aí não, idiota! — diz Amico, dando um pontapé no criado.
— Perdão, alteza... — desculpa-se o lacaio, aterrorizado com o resultado da sua imprudência.
Ao tentar consertar sua gafe, porém, o lacaio sela seu desastrado destino:
— Não seria melhor desistir, alteza? — sugere ele, esfregando bem as coxas do rei.
Um golpe brutal da mão enluvada de Amico desceu do alto, pondo um fim à vida do bajulador.
— Vamos à luta, outra vez! — rugiu o rei, que ficava sempre excitado diante da morte de alguém, principalmente quando era ele o causador.
Pólux, outra vez em campo, estava decidido a liquidar de vez o adversário:
— Vejo que é valente para liquidar lacaios indefesos... — diz o argonauta.
— Guarde seus sentimentos, mocinha. Daqui a pouco os dois estarão cruzando juntos o Aqueronte, rumo aos infernos!
Os golpes recomeçaram, com fúria ainda maior. O sangue correu dos dois lados. Porém, Pólux tem ferimentos de pouca gravidade, já Amico tem o rosto todo ensangüentado: um dos últimos golpes de Pólux enterrara um dos ferros de sua luva no olho esquerdo do rei, arrancando-o.
Sem poder conter-se outra vez — mesmo porque já não tinha mais dentes para ranger, o rei deu um urro de dor tão pavoroso que calou toda a platéia — menos, é claro, a dos argonautas, que explodiu em vivas.
— Desista, verme imundo! — gritou Pólux, tentando poupar ainda a vida do miserável.
— Nunca! — rugiu Amico, que preferia a morte à desmoralização diante de seus súditos.
Cego de dor e de ódio, ele descobriu o rosto. Onde antes estivera brilhando seu olho perverso, havia agora apenas um buraco negro, do qual escorriam fios de um sangue negro e espesso. Sua face irreconhecível era uma máscara congesta de dor e de ódio. Num último e desesperado arremesso, Amico — que já unha o corpo inteiro manchado do próprio sangue — investiu como um touro sobre o adversário. Pólux desviou-se e, então, aceitou no alto da cabeça de Amico — tal como este fizera com seu infeliz lacaio — um golpe vertical de sua luva recoberta de ferros.
Seis pontas agudas enterraram-se no crânio do rei.
Um estupor desceu sobre os aliados do monarca.
— Bravo, Pólux! — gritam os argonautas, em triunfo.
Os aliados do rei, porém, inconformados com a derrota desonrosa, decidiram tirar vingança com as próprias mãos, avançando em direção ao vencedor. Os argonautas, prevendo a perfídia, lançaram-se à arena como um só homem.
De um lado, um punhado de heróis gregos. Do outro, a chusma dos soldados do rei.
Sem esperar sinal algum, os argonautas investiram contra estes últimos, começando uma luta que se estendeu por várias horas. Ao cabo do combate, uma montanha de corpos dos súditos de Amico estava ao chão, misturando o seu sangue num mesmo veio rubro e inestancável.
Os sobreviventes fugiram, e os argonautas puderam, enfim, retomar sua viagem.
Imagem: Reprodução.
Texto: as 100 melhores histórias da mitologia grega.
4 comentários:
Olha que coisa...adoro essas histórias! Antigamente era assim...sanguinários..n fikavam satisfeitos até verem muitos corpos! kkk
Beijos!
http://palomaviricio.blogspot.com
Nossa!! Muito legal Deyse ;)
Beijos, ótima semana para vc!!
nandapezzi.blogspot.com
Adoro mitologia grega, e antigamente era assim, o fim da luta era a morte de um ou de ambos...
Bjins
Bem interessante, mas sou suspeita, adoro mitologia!
Bjos
Mirian
www.oavessodamoda.com
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